5.3.14

LITTLE MONSTROS



Nada de “mais amor, por favor”, pois as pessoas, na verdade, não querem o amor. Elas confundem esse sentimento com alguma outra coisa. Elas não reconhecem as leis do feedback. Elas se acorrentam a um estranho fenômeno de que o amor é um raio que, do nada, cai sobre a sua cabeça. E então é estranho pensar que uns, mas não outros, merecem todo o amor do mundo? E se você, careta, chora ao travesseiro, devastado por tanta desordem, caos, mundo-cão; deve então prosseguir ou desistir? Por aí, a ilusão dos olhos e dos corpos é o que dita regrinha. Mas eu não vou me rebelar, nem concretizar a parafernália da noite, das sortes, dos erros, da incrível injustiça que nunca será incrível – enquanto nos desmanchamos ainda mais no jogo onde todos nós sabemos como agir, mas que nem sequer movemos uma palha. Outra vez eu tive a certeza, outra vez o mundo parou de girar por dois milésimos de segundo, outra vez me deparei com um enorme buraco no espaço; pois ao se aproximar de um objeto é que você enxerga seus detalhes e falhas. A consciência de que estou sozinho no apartamento e eu me basto. Triste fato ou, quem sabe, uma “compensação babadeira que vez e outra a gente se apodera pra tentar levar a vida”? De hoje em diante eu não quero julgar ninguém. Os atos falam por si. Mas continuo me revoltando e fechando a cara pra você que não sabe ouvir. Já perdi a conta das vezes em que eu, pobre mortal, quis chorar minhas pitangas e tudo o que as pessoas mais próximas queriam era: a) narrar a mais recente foda; b) falar sobre o quanto são relevantes nessa sociedade de merda; c) pedir conselhos sobre crises amorosas e etc, etc, etc. O lance é simplesmente esse: saiba ouvir. Egocentrismo é um tiro no próprio cu. É terrível essa constatação de que todos somos monstros cagados na indiferença. E na quarta-feira de cinzas eu não sofro as consequências da ressaca ou do carnaval que eu não dancei. É o lance dos dois lados da moeda. O meu direito a uma revolta doméstica de vez em quando.

Leiamos com atenção um poema do Drummond que resume melhor tudo o que eu tentei dizer:

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

6 comentários:

  1. Oportuno encontro este com tuas palavras, justo numa quarta-feira de cinzas em que minha aparente apatia vela um grave desespero, a ânsia por reunir umas tantas palavras capazes de convencer a mim mesmo: o carnaval acabou. Mero pretexto, reconheço, para lutar contra o domínio das fantasias, no intento de bradar, enfim, o grito de independência, aquele que porá abaixo as máscaras e as vestes de um cotidiano-cativeiro. Engraçado, tanta gente, feito eu, mais tem se escondido no correr dos anos do que nestes quatro dias de festa, os poucos em que se pode fingir sem culpa. Vai ver que isso é medo da queda, de cair na real. É preciso ser forte para aguentar o baque de existir todo dia, mas não há fantasia cujo brilho encante mais do que a tez corada, sem pó nem sombra, de quem aceitou esta "vida apenas, sem mistificação".

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  2. "Porque o amor resultou inútil.
    E os olhos não choram.
    E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
    E o coração está seco."
    Drummond é meu poeta favorito (como se eu conseguisse ter um poeta favorito, enfim...) e este poema é magistral e teu post, me enche a alma e o cérebro. Gosto de mais da forma como juntas as palavras e todas se tornam uma espécie de sentimento escrito (divaguei), mas teu texto me permite isso, e eu adoro. Caríssimo LaCarne, meu coração está seco, mas acho que algo esta acontecendo, não sei se estou sucumbindo no aceite de uma paixão, por alguém ou por minha vida, e já chegava a respirar profundamente e em paz...mas leio este texto e me colo em xeque, mas mais importante ainda, não saio flutuando, mas caminhando com passos firmes, porque se tiver que morrer, morrerei de amor, de pé.
    Mas a amizade ? os amigos ? não sei o que pensar...ontem recebi como resposta de um email que mandei para uma amiga, EU NÃO TE PERDOO, é que esqueci o niver dela (eu sempre esqueço todos, inclusiove o meu), então, fazer o que ? Tenho medo que esta amizada seja como a citada no post, interessada em me usar e não permitie que eu tire uma casquinha, vai entender...
    Querido LaCarne, é sempre um imenso prazer me degladiar com teus posts. Mais um que amei.
    ps. Carinho respeito e abraço.

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  3. Chega um tempo em que você nem vive nem sobrevive..só ocupa.

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  4. Acontece que muita gente ainda não se deu conta de que não passa de uma poeirinha no universo, insignificante.

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  5. A insignificância é muito amarga...
    Belo texto, meu caro!

    Aguardo sua visita ao Mantras.
    Grande abraço!

    www.mantrasdeoutono.blogspot.com

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  6. Reflexivo do inicio ao fim, tanto suas palavras como as de Drummond.
    A vida é essa confusão, esse emaranhado de sentimentos as vezes não tão bem vividos ou aceitos.
    A gente anda matando um leão por dia e no fim das contas a única pergunta será: Cadê os leões?

    PS: Dei uma sumida do blogger, mas voltei por causa de escritores como vocês. <3

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